Texto extraído do Jornal Hora do Povo

No dia 14 de junho de 1928, nascia, em Rosário, província de Santa Fé, na Argentina, Ernesto Guevara de la Serna, que entraria para a História como o “Che”.

Em homenagem a esta insigne figura de revolucionário, de humanista e de pensador — em suma, de ser humano — publicamos hoje alguns trechos de sua conferência, em 17 de agosto de 1961, na Universidade da República do Uruguai.

“Che” Guevara é o homem que escreveu: “Deixe-me dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade. Talvez seja um dos grandes dramas do dirigente; este deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria e tomar decisões dolorosas sem que se contraia um músculo. Nessas condições, é preciso ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentido da justiça e da verdade para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamento das massas. Todos os dias é preciso lutar para que esse amor pela humanidade vivente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo,de mobilização”.

Mais do que escreveu, ele é o homem que levou suas palavras à prática. Fiel a si mesmo, o que significou, sempre, fiel aos seres humanos, identificado sempre com seu sofrimento, ele percorreu o mundo como a própria encarnação da revolução. A empulhação, a farsa, a mentira, a encenação de poses pseudo-revolucionárias, eram-lhe repugnantes.

O Che não era um utópico, não era um romântico — não era um Lord Byron do século XX. Para ele, era necessário definir precisamente o conteúdo da revolução, de forma científica e clara.

É o que ele faz na conferência que proferiu na Universidade da República do Uruguai, que tem por tema o desenvolvimento econômico.

Diz ele: “É, naturalmente, a industrialização que dá a verdadeira pauta do desenvolvimento. De acordo como for o processo industrial, assim decorrerá o desenvolvimento do país.”

Guevara não tem nenhuma ilusão “distributivista” — esse horror, de resto covarde, sempre apresentado como ideologia “social”, em que a política do governo é a de distribuir gêneros e bens importados à população, como se fosse pouco importante produzi-los. Ou, da mesma forma, a distribuição de quantias miseráveis para os pobres, eternizando a pobreza, sem nenhuma preocupação com o desenvolvimento industrial, única via para transformar a vida dos pobres.

Diz ele: “… é preciso produzir, porque se começamos a fazer as casas antes de construir as fábricas de cimento, vai haver um momento em que não haverá riquezas para que essas casas possam sequer ser habitadas, não vai haver trabalho para o homem que a habite, não vai haver nenhuma garantia de que a família desse homem, ao qual lhe deram uma casa, possa comer todos os dias graças ao próprio trabalho”.

Há 88 anos, nascia este homem. Morreu antes dos 40 anos, na selva boliviana. Foi o suficiente para deixar um exemplo luminoso de humanidade — espelhado em uma obra notável.

C.L


ERNESTO CHE GUEVARA

Quando se falava na última Conferência das taxas de crescimento que iria ter a América, achamos que eram muito pequenas para nosso país, cerca de 2,5%.

Nós apresentamos uma taxa de crescimento anual de 10% como aspiração; quer dizer, quatro vezes mais, e o fizemos porque a Revolução Cubana tem responsabilidades muito grandes e não pode apresentar-se com dados que depois a realidade não sancione, porque nós pensamos ter um desenvolvimento ainda mais impetuoso do que uns 10% anuais; 10% é o mínimo, é simplesmente a segurança que tomamos para fazer uma afirmação categórica em uma conferência internacional.

E como se consegue esse desenvolvimento?

Em Cuba — e me atrevo a afirmar que na maioria dos países da América que são fundamentalmente agrícolas ou agropecuários — o desenvolvimento econômico se inicia com a Reforma Agrária e a adequada distribuição das terras.

Nós entendemos que, quando iniciamos o caminho da justiça social, não podemos permitir que comer ou não comer carne dependa de ter ou não ter dinheiro. O direito a comer é o direito de todo mundo.

É uma utopia fazer uma revolução sem sacrifícios.

Por isso, simplesmente, se racionam alguns alimentos como os azeites, as gorduras de todo tipo, que atualmente faltam por causa do bloqueio norte-americano; a carne, temos alguns problemas também com a carne, e às vezes aparecem alguns problemas com artigos de primeira necessidade, que não podemos produzir nas quantidades que nosso povo necessita e exige de forma crescente.

Por exemplo, às vezes temos dificuldades com os sapatos; devemos reduzir alguns compromissos de exportação para poder manter a quantidade de sapatos necessária para nosso povo. Nós temos um exército popular muito grande, que às vezes tem que por-se em pé de guerra — como sucedeu no mês de abril — total, e praticamente a cada homem capaz de empunhar uma arma é preciso fornecê-la, e naturalmente é preciso fornecer-lhe sapatos — botas especiais -, é preciso dar-lhe uma série de atenções.

Por tudo isso, temos dificuldades, naturalmente que as temos tido. Seria, realmente, uma utopia pensar que a noventa milhas do território norte-americano se pode fazer uma revolução social que mude totalmente a estrutura do país, que mude todas as relações de produção, que inaugura uma nova etapa e que tudo isso se faça sem sacrifícios. Na realidade, temos tido, para a magnitude da tarefa empreendida, poucos sacrifícios.

Nós pudemos empreender o desenvolvimento econômico em condições especiais na história da humanidade, quando a correlação de forças cada dia mais está se inclinando a favor das forças da paz, das forças que querem o progresso para os povos. Por isso nós não tivemos que pagar o mesmo preço tão exagerado que pagaram outros povos do mundo, tão alto, porque nunca é exagerado o preço da liberdade, mas não tão alto.

Imediatamente depois que tenha se conseguido em um país ‐ como em qualquer um dos nossos ‐ fazer uma Reforma Agrária, aumentar o mercado interno consideravelmente, há que fazer toda uma série de leis tributárias, de leis de proteção fiscal, que garantam que a indústria nacional vá se desenvolvendo e começar a tarefa da industrialização do país.

É, naturalmente, a industrialização que dá a verdadeira pauta do desenvolvimento. De acordo como for o processo industrial, assim decorrerá o desenvolvimento do país. E outra vez nós podemos dizer que anunciamos taxas de desenvolvimento muito altas, com toda responsabilidade, e as podemos anunciar porque as condições, no mundo atual, são muito diferentes.

Outros povos tiveram que construir tudo mediante seu próprio esforço, tiveram que restringir até as comodidades mais elementares para conquistar uma indústria pesada, que é a base indispensável do desenvolvimento dos povos. Nós iniciamos o caminho de nossa industrialização pesada com créditos exteriores a longo prazo.

Mas esses créditos são dados de tal forma que não comprometem a dignidade nacional, nem comprometem o futuro mediante obrigações onerosas para pagar os empréstimos. Até agora podemos dizer ‐ para falar em termos reais, absolutos, para não pecar pela mais mínima dose de otimismo ‐ que temos 357 milhões de dólares em empréstimos destinados à indústria.

Quer dizer que cada um dos dólares emprestados, que é parte de uma maquinaria, irá produzir riquezas imediatamente. Não se fazem, nem o nosso país o admite, empréstimos para outra coisa que não seja produzir riquezas.

Essa é a tarefa fundamental que há que se propor nos programas de desenvolvimento. Um programa de desenvolvimento que comece por ver o número de escolas, de casas ou de caminhos que irá se fazer, é irreal. O desenvolvimento social é algo realmente imprescindível e é pelo que todos lutamos. É ridículo, na prática, pensar que somente se lutará pelo simples desenvolvimento econômico, e que o desenvolvimento econômico será em si mesmo um fim. Isso não é assim.

O desenvolvimento econômico nada mais é que o meio para conseguir o fim, que é a dignificação do homem. Mas para conseguir esse fim, é preciso produzir, porque se começamos a fazer as casas antes de construir as fábricas de cimento, vai haver um momento em que não haverá riquezas para que essas casas possam sequer ser habitadas, não vai haver trabalho para o homem que a habite, não vai haver nenhuma garantia de que a família desse homem, ao qual lhe deram uma casa, possa comer todos os dias graças ao próprio trabalho.

Por isso, é preciso começar pelo princípio, que é o aumento dos meios de produção. Não quer dizer isto que agora, ou que em Cuba ‐ para dar um exemplo específico ‐ vamos nos dedicar única e exclusivamente a construir fábricas, a fazer com mais rapidez a cada dia as 205 fábricas que estão planejadas até este momento, a pô-las a produzir somente e que vamos nos esquecer dos deveres que temos para com o nosso povo. Isso também seria absurdo.

A única coisa que temos de considerar, é que primeiro está o desenvolvimento e que toda conquista de tipo social que não se baseie em um aumento da produção, tarde ou cedo vai fracassar, vai naufragar. De tal forma que nós, por exemplo, temos falado com os operários, temos dialogado muito seriamente durante muitos meses até conseguir que se produzisse o acerto nacional de salários. O congelamento de salários em nosso país é uma medida que os operários têm tomado para conseguir aumentar os excedentes necessários para que haja novas fábricas e para que homens que estão hoje desempregados possam amanhã trabalhar e ingressar na sociedade com plenos direitos.

E podem os operários de nosso país fazer isso, e entregar excedentes de seus justos direitos por salários, que deixam de cobrar, pela simples razão de que as fábricas lhes pertencem.

As fábricas são do povo, de tal forma que para nós o sacrifício, que é realmente um sacrifício, é feito pensando no futuro e, além disso, pensando que não deve haver nenhuma pessoa, individualmente, que irá se beneficiar com os frutos do sacrifício coletivo de nossos operários.

É um sacrifício de todos para o bem de todos.